6° capítulo O Refúgio na Casa Abandonada & A solução dos problemas
“Onde
estou? ”
“De
quem é essa casa? ”
“Como
eu vim parar aqui? ”
“Onde
estão minhas armas? ”
Olhou
para si e constatou que estava em frangalhos, ferido, imundo como nunca,
maltrapilho.
Fedia
mais do que nunca.
Não
se lembrava de nada.
Estava
sofrendo do que hoje se conhece como “A amnésia dissociativa é uma incapacidade
de recuperar informação pessoal importante, geralmente de natureza stressante
ou traumática, a qual é muito generalizada para que possa considerar-se como um
esquecimento individual. A perda de memória inclui, de um modo geral,
informação que faz parte do conhecimento consciente habitual ou memória
«autobiográfica» (quem é, o que fez, onde foi, com quem falou, o que disse,
pensou e sentiu, etc.). As pessoas com uma amnésia dissociativa têm,
habitualmente, uma ou mais lacunas de memória que se estendem de poucos minutos
a algumas horas ou dias”.
Levantou-se
vagarosamente e chegou no buraco onde um dia teve uma porta.
Olhou
em volta e só viu ruínas.
Não
tinha armas, e estava com fome.
Saiu
procurando algo que pudesse fazer uma funda, e encontrou, naquilo que deveria
ter sido um deposito, um pedaço de correia de couro.
Ajeitou
a correia como fazia quando menino, e saiu atrás de alguma caça.
Matou
umas aves e as comeu crua, pois não tinha encontrado nada que pudesse acender
um fogo.
Bebeu
agua do poço sujo que ficava próximo a ruína da casa, e se deitou nu, numa
sombra de uma bela arvore.
Acordou
ouvindo o pio da coruja pousada na arvore, e ao se levantar viu o céu mais
lindo quem até então havia visto.
Viu
a Lua Cheia, as estrelas, que pareciam estar cantado de alegria, duas ou mais
estrelas cadentes cruzando os céus, e se lembrou de agradecer a Deus por estar
vivo, longe daquele navio, daquela Armada, e caiu em prantos, um pranto longo e
sofrido.
Adormeceu.
O
Sol já estava alto quando Manuel acordou de seu torpor.
Tinha
que organizar a vida.
“Não
tenho roupas, pois vou andar nu”, falou para si mesmo.
Procura
daqui, procura dali, e o que Manuel encontrou foi muito pouco.
A
única coisa que valia a pena era uma velha, suja, rota, manta, que ninguém que
saqueara aquele local quis levar.
Lembrou-se
que para fazer fogo só precisava esfregar um graveto contra uma pedra, por cima
de um monte de galhos e folhas secas, como o avô ensinara.
E
partiu novamente para a caça.
Fez
fogo, uma tarefa que muito demorou, e acabou comendo uma suculenta ave bem tostada
a moda do campo, “não tão boa como a mãe fazia em Cucujães”, sorriu com o
pensamento, mas logo se pôs a comer e a esquecer.
Feita
a sesta, saiu para assuntar onde estava, e acabou dando na “laguna e sua bela
praia paradisíaca, escondida por mata densa que serviria para um esplêndido
porto camuflado, bom para o contrabando”.
Ficou
extasiado.
Nunca
tinha visto um lugar tão bonito, tão luxuriante, até o mar era diferente, tinha
uma coloração especial que ele não sabia dizer que cor que era.
Ele
que não suportava o mar pelas as agruras que a vida nele lhe trouxera, correu e
se atirou naquela aguas límpidas e refrescantes.
Parecia
um menino pequeno com brinquedo novo.
Jogava
agua para cima.
Pulava,
mergulhava, ficou um tempo sem fim...
Até
que bateu um frio e ele foi para casa feliz, muito feliz, como não havia estado
desde que fora embarcado à força na Armada do Rei de Espanha e Portugal e
senhor de outros domínios.
E a
vida continuou assim, nesse ritmo, com Manuel Leite tentando pôr em ordem
aquela propriedade em ruinas.
Um
belo dia, indo para a praia de batizou com o nome da mãe, Praia da Jachinta,
viu que depois da boca da laguna, já dentro dela, estava uma nau sendo reparada
por alguns marinheiros.
Ficou
espiando, quando viu alguns homens na praia assando alguma coisa que o cheiro
lhe lembrou cabra na brasa, e foi chegando mais perto.
De
repente uma forte mão pegou o seu cangote, e o empurrou para junto daqueles
marujos na praia.
“Ik
vond het hier. ”
O
grandão que estava fazendo o assando se levantou e olhou para o que o
companheiro havia achado.
“
Manuel”, foi logo gritando.
“
Zenon”, gritou o prisioneiro, que foi
logo libertado das mãos do bugre que o segurava.
Zenon
Baius estava mais alto do que nunca, mas forte do que nunca, mais cabeludo e
barbudo do que nunca, parecia um pirata, e era.
E
deram um forte abraço para espanto da marujada que não estava entendo nada.
“Tu
viraste índio? Tá escuro como eles. O que aconteceu? ”, falou o alegre valão
sempre sorrindo em seu português arrevesado.
“ É
uma longa história, e eu não me lembro de toda ela”.
“
Me conta”.
Foram
para um canto da praia e começaram a conversar.
Manuel
ficou sabendo que Zenon Baius havia sido capturado quando seu navio fazia
escolta de uma frota carregada de ouro, prata e outros bens comerciais caros,
como índigo e cochonilha, que partiu da Venezuela com destino a Espanha, por um
dos navios da frota comandada pelo agora Almirante-corsário Piet Hein, aquele
que ajudou na tomada de Salvador, e por ser da Valônia lhe foi dada a opção de
se incorporar ao navio corsário e foi o que ele fez.
Agora
eles estavam ali porque pegaram uma tempestade no Atlântico Sul e precisavam de
reparos, mas o negócio deles era o comercio negreiro.
“O
capitão Andries Van den Bergen é corsário autorizado pelo Companhia Holandesa
das Índias Ocidentais - "WIC", muito justo e vai ter com tu.”
“Não,
Zenon Baius, não”.
“Eu
nunca mais vou voltar para o Mar Oceano. Nunca mais”, falou enfaticamente
Manuel.
“
Tu que viver aqui? ”, perguntou o gigante espantado.
“
Sim, meu caro, amigo, sem sombra de dúvida. Venha ver isso”.
E
Manuel mostrou sua casa em ruínas, mas sua casa.
O
gigante coçou a cabeça, dizendo:
“
Tu que sabe”.
Voltaram,
comeram, riram, e os marujos voltaram para o navio.
Manuel
ficou na beira d’agua imaginando se algum um dia voltaria a ver Zenon Baius.
A
noite caiu.
O
sol estava nascendo e Manuel ouviu barulhos estranhos.
Foi
a janela e viu uma cena inusitada.
Um
jovem gigante aloirado, empertigado, bem-apessoado, elegante, que só podia ser
o capitão, acompanhado de Zenon, de 4 homens armados até os dentes, e atrás 3
rapazes carregando, roupas, um barril de vinho, armas e munições, frutas, um
casal de caprino, um galo e galinhas, ovos.
Zenon
viu Manuel na janela e gritou que o capitão queria falar com ele.
O
capitão sabia falar português por causa de sua amizade com os membros da
Esnoga, a Sinagoga Portuguesa de Amsterdam, como por suas aventuras na África
portuguesa, e se mostrou um homem educado de trato.
Explicou
que sua família comprou e equipou um navio para se dedicar ao trafego negreiro,
e que ele se tornou um corsário.
Explicou
que um corsário era na realidade um pirata com autorização de realizar
pirataria, pois, tinha um código de conduta, tinha regras pré-estabelecidas por
contrato.
Explicou
que o corsário era “abençoado”, reconhecido através da famosa Lettre de course
(carta de Corso), ou Lettres de Marque (carta de marca), ou lettre de
commission (carta de comissão), ou letter of marque and reprisal (carta de
marca e represália)”.
Explicou
que era um documento dado por um Soberano, ou Nação Soberana, autorizando um
capitão e sua equipe buscasse, atacassem, apanhasse, destruísse os navios ou
equipamentos de uma outra Nação em qualquer parte do Mar Oceano em tempos de
paz ou de guerra.
Explicou
que que esse beneficiário não era financiado pelo Soberano, mas sim por um
armador privado, por uma Companhia de Comercio, por comerciantes, sob contrato
que garantia, que estipulava compartilhar os custos e os lucros, de acordo com
regras de direito claramente estabelecidas.
Explicou
que na corsária o capitão preso podia ser morto, levado para os Tribunais
Marítimos das Nações que forneceram suas Cartas, ou simplesmente vendida como
escravos para os mouros das cidades ao longo da Costa Berbere, no norte da
África, como Túnis e Argel.
Portanto,
corso era “modalidade de guerra que consistia na investida de navios armados
contra navios mercantes para apreender mercadorias”.
Explicou
que pelo prestigio da sua família eles obtiveram uma Carta de Corso da De
Geoctroyeerde West-Indische Compagnie of West-Indische Compagnie, meestal
afgekort tot WIC - a nossa já conhecida
Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, a nossa conhecida WIC, fazendo, é
claro, o contrato de praxe.
Manuel
ficou impressionada coma deferência com que ele foi tratado, ele um pastor de
cabra, ele um sem eira nem beira nem ramo de figueira, um fugitivo da Armada
Real, por um cavaleiro tão nobre e tão distinto.
Gostou.
Conversa
vai, conversa veem, e Manuel Leite entrou para o negócio de escravos.
O
trato era que os holandeses construiriam ali um local de desembarque de
escravos aproveitando da geografia da laguna, de sua praia paradisíaca,
escondidas pela mata densa, um local privilegiado para o contrabando, e que
Manuel ficaria responsável não só pelo local – que Companhia Holandesa das
Índias Ocidentais - "WIC" pagaria por tal tarefa- e mais pelas
vendas, e nessas teria uma participação - de acordo com cada negociação- no
lucro obtido com a carga.
Os
4 rapazes, que tinham sido salvos de navios luso-espanhóis que iam para as
minas do Peru, ficariam ali para ajudar Manuel naquilo que fosse necessário.
O
capitão Andries Van den Bergen lhe deu uma vultosa quantia em moedas de ouro
para a compra da propriedade, bem como para a construção de novas instalações,
reforma do que estava em ruinas, e para o custeio pessoal de Manuel.
Essa
importância seria deduzida da participação de Manuel nas futuras vendas dos
escravos.
“Eu
falei ao capitão que tu eras boa pessoa. Agora tu trabalhas bem para a
Companhia. Sim, faz favor”, falou um seríssimo Zenon Baius.
De
um salto, Manuel perguntou:
“
Que dia é hoje? ”
“Dia
17 de junho.”
“Meu
bom Deus, Hoje é dia de São Manuel, o dia que eu nasci”, e ficou
emocionadíssimo.
O
capitão Andries Van den Bergen mandou buscar um outro barril de vinho, e todos os presentes
brindaram a saúde de Manuel, o novo negociante de escravos no Brasil para a
"WIC".
Com
isso, e o trato feito, os marujos voltaram para o Navio Negreiro, de Werkelijke
Nautilus, e partiram de madrugada rumo ao desconhecido.
Manuel
Leite não estava acreditando no que estava acontecendo com ele.
Sentado
no degrau do alpendre em ruinas, não sabia se ria ou chorava.
Os
moços chamavam Mateus, Marcos, Lucas e João, e eram lisboetas.
Um
deles logo trouxe mais vinho para seu novo senhor, que declinou com palavras de
agradecimento.
Um
deles fez a comida, uma bela fritada de ovos com pedaços de bacalhau, que matou
as saudades de casa de todos eles.
No
dia seguinte começaram os preparativos para ida a Salvador da Bahia.
Comentários
Postar um comentário